A acústica no topo
Em 1997, o arquiteto Nelson Dupré foi convidado pela Secretaria de Estado da Cultura a participar da concorrência para requalificar a estação ferroviária Júlio Prestes que seria adequada para o uso da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Três anos depois, a Sala São Paulo receberia o prêmio de honra do Instituto de Tecnologia Teatral dos Estados Unidos e o nome do consultor de acústica da obra, José Augusto Nepomuceno, ganharia repercussão internacional. Nesta entrevista, Nepomuceno, designado coordenador do grupo de trabalho Salas Especiais da ProAcústica, comenta o estado da arte de projetos acústicos no Brasil e lá fora.
José Augusto Nepomuceno talvez seja o arquiteto acústico mais conhecido fora dos círculos profissionais no Brasil. Nepomuceno trabalha com acústica desde 1978 e há mais de 15 anos divide o tempo entre as atividades na Acústica & Sônica, em São Paulo, e nos Estados Unidos, na Akustiks. Construiu o renome quando participou de projetos relevantes como a Sala São Paulo. Fora do Brasil, trabalhou no Gran Teatro Nacional de Lima, no Peru, no Museu de Arte de Cleveland, nos Estados Unidos, e no Teatro de San Luis Potosi, no México. Por aqui, trabalhou no complexo cultural paulistano Praça das Artes, na Sala Minas Gerais de Concertos, em Belo Horizonte, e na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, para citar alguns. É membro correspondente do TC 2.6 da Ashrae, a American Society of Heating, Refrigerating and Air-Conditioning Engineers, e recém-empossado coordenador do comitê de Salas Especiais da ProAcústica.
Você poderia fazer uma análise ou um comentário sobre a evolução da arquitetura e consultoria acústica para salas especiais nestes últimos anos? Em termos de equipamentos de áudio, sobre a indústria da construção, mão de obra e a arquitetura eletrônica quais foram as mudanças?
A acústica de salas especiais como teatros, salas de concertos e de ópera e outros locais de escuta sensível ainda é um conhecimento novo, com pouquíssimos especialistas em todo mundo e em constante atualização. A compreensão das relações entre a arquitetura e a acústica evoluiu muito nos últimos 35 anos em especial nos Estados Unidos e em parte da Europa. No caso dos Estados Unidos, para dar um exemplo, é impensável iniciar um projeto de uma sala de concertos ou teatros sem as definições acústicas alimentando a arquitetura. As evoluções nos software de modelagem são notáveis – ainda que a utilização e os resultados sejam, com frequência, supervalorizados. Os materiais avançaram e os testes de materiais também. Avançou a compreensão de como utilizar as diferentes materialidades. Na área de áudio, os sistemas de arquitetura eletrônica evoluíram a um ponto que não se sonhava nos anos 80. E a área de áudio evolui em uma escala de tempo impressionante. No Brasil, precisamos, urgente, de uma revolução no que se refere à etapa de obras. Muitos problemas acústicos em teatros decorrem de falhas nessa fase. São questões sérias que vão de falta de qualificação de mão de obra aos desconhecimentos das inter-relações entre acústica e obra. Os clientes têm dificuldade em compreender o impacto que um sistema instalado de forma incorreta tem no resultado final e na percepção acústica do local.
Qual é o objetivo da acústica? Criar uma experiência de entretenimento memorável? Garantir fidelidade ou clareza? O que mais?
Tem uma brincadeira sobre isso. Na sua casa você pode assistir a um espetáculo em alta definição, com som limpíssimo, sem enfrentar trânsito, sem fila para o banheiro ou café. Por que raios, então, você iria a uma sala de concertos para assistir ao mesmo espetáculo? A resposta é esta: participar de uma experiência memorável. E a acústica é parte central dessa experiência. Uma sala de concertos com acústica notável nos leva a um nível de emoção celestial. Se tiver um mínimo de humanidade dentro de você é impossível não se dobrar à emoção que a escuta em uma sala de acústica notável convida. E sendo uma especialidade, com esta força e impacto, é curioso que, no Brasil, a acústica em projetos teatrais seja classificada como “disciplina complementar”. Tudo na acústica desses locais orbita em torno da função de obter essa experiência. E, se estamos buscando uma experiência notável, parece razoável supor que a acústica esteja no topo das decisões de projeto; que oriente todos os aspectos: geometria, volumetria, acabamentos, disposição de poltronas e até mesmo a cor.
As capitais e as grandes cidades brasileiras têm tradição quando se fala em teatros, cinemas ou salas de audição – temos o teatro Santa Isabel de 1850 (o mais antigo teatro sinfônico, em Recife); o teatro São Pedro, de 1858, em Porto Alegre; o teatro da Paz, de 1878, em Belém; e o Amazonas de 1896, em Manaus. Nos próximos anos, as cidades médias e pequenas podem sonhar com salas de alto nível acústico?
Tanto estes teatros que você citou como muitos espaços novos têm boa condição acústica. Podemos apenas lamentar que muitos teatros brasileiros pequem pelas instalações ou infraestrutura precárias, o que acaba por prejudicar a experiência de escuta. Este “sonho” não parece assim tão distante. Veja os exemplos do Teatro Municipal de Paulínia, o Teatro Erotides de Campos, em Piracicaba, dois exemplos em que a acústica deve uma participação central no projeto. O Sesc em São Paulo tem um papel importante na difusão dessa possibilidade quando constrói estes “centros comunitários” – ou unidades como eles chamam – com teatros de bom padrão.
Você pode comentar sobre os projetos da Sala São Paulo, do auditório do recém-inaugurado Sesc 24 de Maio e da Sala Minas de Concertos, na estação da cultura Presidente Itamar Franco? Há outros projetos recentes?
A Sala São Paulo e a Sala Minas de Concertos são duas referências muito importantes em espaços de concertos. São exemplos internacionais de qualidade. As duas têm programas de uso e capacidade similares, abrigam orquestras exemplares como a Osesp e a Filarmônica de Minas, mas com um design acústico diferente. A Sala São Paulo é uma requalificação de espaço existente e as condições locais condicionaram uma volumetria de “caixa de sapato”. Já a Sala Minas é um projeto novo e o partido de arquitetura interna não teve os condicionantes de São Paulo. Os desafios técnicos nas duas foram altíssimos e muito diferentes. Ferramentas sofisticadas foram aplicadas no desenvolvimento dos dois projetos, de testes em modelos físicos a medições e exercícios de escuta depois da inauguração. Para você ter uma ideia: passados 20 anos continuamos colaborando de forma intensa com a Sala São Paulo; e no mesmo caminho vai a Sala Minas. O teatro do Sesc 24 de Maio acabou de inaugurar. Não temos tempo de escuta para falar muito – até por falta de oportunidade – mas é um projeto interessante. Outros projetos recentes que tenho especial carinho seriam a Praça das Artes e o auditório Ibirapuera. E lamento a demora na conclusão das obras da Sala Sinfônica da Ospa, em Porto Alegre.
Sala São Paulo – Arquivos Acústica & Sônica (SSP_01_s Cred)
A arquitetura e a arte vão continuar empurrando a acústica para novos desafios? Nos últimos anos, várias experiências chamaram a atenção. Podemos comentar ou criticar algumas? Por exemplo: o Pierre Boulez Saal, em Berlim, na Alemanha (Barenboim-Said Akademie); Gran Teatro Nacional, em Lima, no Peru; o teatro The Strand, em São Francisco, nos EUA (adaptação para reúso); o Theatre for New Audience e o National Sawdust (uma sala de concertos para música de vanguarda), ambos no Brooklyn, e o Susan and John Hess Theater no Whitney Museum, todos em New York.
Esta é uma pergunta interessantíssima. Porque a acústica continuará a empurrar a arquitetura para novos desafios. Dos exemplos acima tenho entusiasmo pela arquitetura teatral e acústica da Pierre Boulez Saal e do National Sawdust. São programas muito diferentes. A Pierre Boulez Saal é de uma simplicidade encantadora e surpreende pelo silêncio – está no limite de uma rua movimentada. No caso do Sawdust gosto muito do projeto, da sonoridade e do programa. Estes casos que unem o espaço teatral e educação ou residência artística são notáveis no sentido de ampliação de novas audiências. Sou muito encantando com os resultados e a vibração que emana do Gran Teatro Nacional em Lima, no Peru, da Sala Minas de Concertos, em Belo Horizonte, e do Ordway Recital Hall, em Saint Paul, Minnesota. O TFNA – Theatre for New Audience – no Brooklyn, é outro espaço interessante. A Sala Minas compõe um partido arquitetônico de sala híbrida que adota características das salas em forma de “caixa de sapato” e as salas surround. Não consigo uma palavra melhor em português: poderiam ser “salas em arena” ou “envolventes” como a Berlin Philarmonie ou a Pierre Boulez Saal. Admiro o projeto do Susan and John Hess Theater no Whitney Museum, em New York. Uma solução simples de piso plano com poltronas retráteis, que permite diferentes usos que vão de um banquete a uma apresentação de pequenos conjuntos de música ou artes performáticas. Uma janela que se abre para o rio Hudson tem uma visão que rompe a rigidez entre interno e externo tão comum aos teatros.
Sala Minas – Arquivos Acústica & Sônica (S Minas_03_Cred A&S)
No Brasil existe essa distinção entre sala de concerto e casa de ópera?
A distinção entre as tipologias dos espaços de apresentação existe independente do local. O entendimento quanto a essa distinção é que representa uma questão séria. Não estou seguro que as diferenças de programa de uso, gestão e custo envolvidas nessas tipologias sejam claras no Brasil.
Como recém-associado da ProAcústica e designado coordenador do grupo de trabalho Salas Especiais, quais os principais assuntos devem ser de relevância para o debate e trabalho na entidade?
Como você disse, sou recém-associado e coordenador recém-designado – o que me deixa muito contente em poder colaborar. Estou ainda organizando as ideias. De início, penso que a ProAcústica poderia colaborar nas normas sobre o assunto e aglutinar fabricantes, arquitetos e consultores para uma discussão quanto as colaborações em diferentes frentes.