Como o barulho está piorando a qualidade de vida de quem mora em São Paulo
Enquanto Paris começa uma guerra contra o excesso de barulho, aqui, vivemos uma cacofonia arrogante e insalubre
Fonte | Jornal Folha de São Paulo – Online – 06/05/2022
Autoria | Mauro Calliari – Administrador de empresas e doutor em urbanismo. Professor, palestrante e autor do blog Caminhadas Urbanas e do livro Espaço Público e Urbanidade em São Paulo.
Conteúdo Impresso | Acesse aqui
Conteúdo Online | Acesse aqui
Durante o início da pandemia, quando havia poucos carros circulando, ouvi com surpresa, pela primeira vez, os sinos de uma igreja que fica perto de casa. Com a volta do trânsito, a nostalgia do sino foi sufocada pela antipatia dos motores e britadeiras. Estamos de volta ao reinado do barulho.
Num dia só, convivemos com uma cacofonia desvairada, desde o rugido do primeiro ônibus até o recolhimento da última caçamba, passando pelo escapamento aberto de motocicletas, música altíssima de carros e bares, alarmes -“este veículo está sendo roubado” -, a reforma do apartamento 32 e os aviões que passam a cada dois minutos em direção a Congonhas.
A sensibilidade ao barulho não é idiossincrasia individual. Uma pesquisa com síndicos mostrou que a maior reclamação de moradores que ficaram em casa na pandemia foi o incômodo com os ruídos de vizinhos. Outra pesquisa mostrou que o barulho é uma das principais razões para que 57% dos paulistanos queiram deixar a cidade, junto com a violência e o trânsito.
Na Europa, o barulho já é reconhecido oficialmente como forma de poluição. Paris começou uma guerra contra o excesso de barulho. Um pesquisador francês mostrou que uma única moto desregulada cruzando de madrugada a cidade é capaz de acordar até 10 mil parisienses. Dez mil! A fiscalização já começou. Agora, motoristas que tiverem seus carros acima do limite vão ser multados em 135 euros. Até as sirenes dos carros de polícia estão abaixando o volume.
Se Paris é a capital mais barulhenta da Europa, bem acima de Londres e Roma, ela nem chega entre as mais barulhentas de outros continentes. A campeã mundial, de acordo com outro estudo, é Tóquio. A quarta cidade mais barulhenta do mundo, para surpresa de ninguém que mora aqui, foi São Paulo.
São Paulo até tem uma lei que obriga a cidade a confeccionar seu mapa sonoro, até 2023, e a Prefeitura informa que há um grupo da Secretaria de Desenvolvimento Urbano trabalhando nisso. Um piloto feito há alguns anos no Centro por um grupo de empresas, porém, mostra aquilo que já se imagina: o nível de ruído fica regularmente acima do limite de incômodo ao longo das grandes avenidas.
O problema é que nosso Plano Diretor, atualmente em discussão, estimula justamente que mais pessoas venham morar nos eixos de transporte, ou seja, ao longo das vias mais barulhentas da cidade, com ônibus, carros e motos —ou helicópteros, como na Faria Lima.
Sem outras ações, os novos moradores dos empreendimentos que sobem na Rebouças ou na Radial Leste vão ter que instalar janelas antirruído ou usar protetor auricular cotidianamente para conseguir dormir. Eu até chequei com a 3M, que fabrica um desses protetores: as vendas dobraram nos primeiros meses de 2022 em comparação ao ano passado. O barulho voltou e cada um tenta se defender como pode.
Barulho faz mal de verdade. A Organização Mundial da Saúde sugere que pode causar a perda da audição, problemas gastrointestinais, cardiovasculares e respiratórios, distúrbio no sistema nervoso e até depressão. Além, é claro, daquela sensação ruim de cansaço e frustração de quem vê o seu bebê acordado por uma buzina de madrugada ou quem não consegue nem falar ao telefone por conta da britadeira da Sabesp.
Há sons gostosos em São Paulo, claro, mas eles parecem cada vez mais estar ligados ao tempo da memória. Antes de a cidade ser tragada pelas vias expressas, quem morava nos bairros conhecia o chamado de cada vendedor, do afiador de facas, do tintureiro, pela sua musiquinha. O vendedor de sorvete na década de 1940 do Brás atraía as crianças com o seu clássico “survetinho, survetón, sorvetinho de limón, quem não tem dez tostão, não toma sorvete, não”.
A cidade se agigantou e sons urbanos perderam o romantismo. Em “A Capital da Vertigem”, Roberto Pompeu de Toledo escreveu que “Modernidade, entre tantas coisas, é barulho”. Foi esse barulho que inspirou Mario de Andrade a escrever “Pauliceia Desvairada”, depois de se debruçar para os ruídos, luzes e gritos da avenida São João.
Se em Mario, a barulheira inspirou prosa e poesia, ainda é possível encontrar lirismo em alguns sons da cidade, uma conversa gostosa na esquina, crianças brincando na praça do bairro e, para alguns até no homem da “pamonha, pamonha, pamonha de Piracicaba”.
Cada um percebe os barulhos de maneira diferente, mas talvez seja um traço cultural achar que todo silêncio precisa ser preenchido. No Rio de Janeiro, a cidade decidiu coibir o som alto na praia, gerando polêmica entre apoiadores e críticos. Aqui, quando a Paulista fecha para os carros, e temos a rara chance de ficar em silêncio, logo vem alguém ligar uma caixa de som, de preferência bem alta.
Por falta de interesse e de empatia, ou medo dos próprios pensamentos, o barulho ainda não chegou na pauta das prioridades de um país com tantas prioridades que ainda não chegaram à pauta. Ouvir mais gente e menos motor é parte do processo civilizatório.