O ruído do desenvolvimento

Título | O ruído do desenvolvimento
Fonte | Portal Página 22 Informação para o Novo Século – Centro de Estudos em Sustentabilidade da EAESP – FGV / GVces
Autora | Karina Ninni
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No Brasil, apenas Fortaleza providenciou uma carta acústica, embora São Paulo seja considerada uma das cidades mais barulhentas do mundo.

Um dos desafios de viver em ambientes urbanos é o excesso de barulho. Locais silenciosos em cidades de médio e grande porte são cada vez mais raros. Já existe inclusive um aplicativo, o stereopublic, em que os usuários são chamados a encontrar e compartilhar lugares silenciosos e tranquilos em suas cidades.

Quem pode paga caro para viver em condomínios distantes das regiões centrais, com áreas verdes que garantam um mínimo de tranquilidade. E mesmo estes enfrentam diariamente a sina de ir e voltar do trabalho em congestionamentos cujo nível de ruído, não raro, bate os 100 decibéis [1]. O máximo que o ouvido humano consegue suportar são 120 db. Expostos por certo tempo a essa intensidade sonora, ou mais, estamos sujeitos à dor e à perda auditiva.

[1] Decibel (dB) é uma unidade logarítmica que indica a proporção de uma quantidade física (neste caso, intensidade) em relação a um nível de referência especificado. Um decibel é um décimo de um Bel, unidade raramente usada, e nomeada em homenagem a Alexander Graham Bell.

Mas o barulho nas grandes cidades não é um problema contemporâneo. De acordo com a fonoaudióloga e educadora ambiental Márcia Correa, da Universidade Aberta de Meio Ambiente e Cultura da Paz (Umapaz), em 1867, havia no Brasil multas para carros de bois cujos eixos rangessem por falta de graxa. Em 1912, um ato municipal proibia o estalo de chicotes em cavalos que conduziam carruagens.

O engenheiro especializado em acústica, Davi Akkerman, da Associação Brasileira para a Qualidade Acústica (ProAcústica), lembra que hoje a NBR nº 10.151, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), norteia todas as legislações municipais sobre ruído no Brasil. A norma foi referenciada em 1990 pela Resolução nº 01 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

“Acontece que a última versão dessa norma é de 2000. E, como houve grande degradação acústica nas cidades, muitos dos padrões que estão na norma já não servem mais”, resume Akkerman. Segundo ele, a norma está em revisão há dois anos, mas há grande pressão de diversos setores, de indústrias a concessionárias de rodovias. “O conflito de interesses é muito grande.” O engenheiro ressalta que o grande vilão nas cidades é o tráfego de veículos. E sentencia: “Se as cidades forem deixadas sem controle, a qualidade acústica tende a piorar”.

“As cidades estão mais ruidosas. Todo mundo ouve mais alto e fala mais alto. Isso é um problema de saúde pública, porque todos são atingidos, não importa a classe social”, afirma Márcia Corrêa, da Umapaz, que ajudou a organizar o primeiro curso sobre poluição sonora e os impactos na saúde, promovido em maio pela Secretaria do Verde e do Meio Ambiente.

Dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam que 10% da população mundial está exposta a níveis de pressão sonora que podem causar perda auditiva induzida por ruído.

“Do ponto de vista do enquadramento do problema, é uma área interdisciplinar. E, para resolvê-lo, é necessário o envolvimento de todos os setores: universidades, ONGs, políticos, instituições”, opina Márcia.

Mesmo dentro de casa, parece que nossos parâmetros se flexibilizaram com o tempo, a tecnologia, a modernidade e a facilidade de comprar qualquer coisa a qualquer preço. Quem foi criança nas décadas de 1950 e 1960 ainda guarda lembranças de como era a vida antes dos brinquedos eletrônicos (e dos sons horríveis que eles fazem). Na década de 1970, época do chamado “milagre econômico”[2], quando o Brasil entrou no “mapa” como promissor mercado consumidor, os eletrônicos passaram a fazer parte constante da vida dos pequeninos. Os que têm entre 40 e 45 anos pegaram bem essa transição. Hoje, em qualquer lugar é possível comprar brinquedos “piratas” ensurdecedores, cujo barulho muitas vezes supera os padrões estipulados pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) [3].

[2] Período da ditadura militar que registrou crescimento da economia acima da média

[3] Segundo o Inmetro, o ruído gerado por brinquedos, independente da faixa etária a qual se destinam, não deve ser maior que 85 decibéis, no caso de ruído contínuo, e 100 decibéis no caso de ruído instantâneo

Isso sem contar a “evolução” da indústria fonográfica, que década após década nos impõe maior intensidade de volume sonoro. “As pessoas estão se acostumando a achar que coisa boa é aquilo que tem bastante volume”, afirma o engenheiro de áudio Beto Mendonça, dono de um estúdio em São Paulo. Basta comparar o volume dos discos de 20 anos atrás com os de hoje.

“A música vem sendo ‘achatada’. O som é comprimido ao máximo para que o volume fique mais alto. Isso provoca uma fadiga auditiva no ouvinte. A pessoa não consegue chegar até o fim da música, ou do disco, e não sabe por quê”, resume Mendonça.

Ele ressalta ainda a perda de dinâmica que o excesso de compressão provoca na música, o que se traduz em perda de qualidade do material final e, em última instância, em “deseducação” dos ouvintes.

O tema é caro entre profissionais de áudio na Europa e nos EUA, e leva a tag de The loudness war (Saiba mais). “Há preocupação em discutir um padrão”, afirma Mendonça.

MAPA DE RUÍDOS

Do ponto de vista das políticas públicas, uma das emergências apontadas por especialistas no tema é a elaboração de mapas de ruídos das cidades mais populosas. Na União Europeia, a partir de 2002 as cidades com mais de 200 mil habitantes foram obrigadas a fazer suas “cartas acústicas” (mapa de ruídos). Tiveram cinco anos para a elaboração dos mapas, e depois mais cinco para implementar ações julgadas necessárias para corrigir problemas e manter a tranquilidade de espaços considerados “ilhas” de silêncio.

Para se ter uma ideia do quão longe estamos do nível europeu, em São Paulo, considerada uma das metrópoles mais barulhentas do mundo, a primeira Conferência Municipal sobre Ruído, Vibração e Perturbação Sonora aconteceu em abril deste ano, por ocasião do Dia Internacional da Conscientização sobre o Ruído, o International Noise Awareness Day (Inad). O evento, realizado na Câmara Municipal de São Paulo por iniciativa do vereador Andrea Matarazzo (PSDB), durou três dias e contou com a presença de diversos especialistas no tema.
No Brasil, a única cidade que tem um mapa de ruídos é Fortaleza. De acordo com Aurélio Brito, coordenador da Carta Acústica na Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente da capital cearense, foi feito um protótipo com base em dados de 1995 – 13 anos antes do início da formatação do mapa.

“Este protótipo serviu para definirmos a metodologia e também como base para um projeto mais sólido. Os resultados obtidos foram pouco divulgados devido à notória diferença entre a base de dados e a realidade da cidade, mas, em alguns casos e setores, foram feitas algumas avaliações”, diz Brito. O projeto encontra-se em fase de atualização de dados.

Em São Paulo, o Plano Diretor Estratégico, que entrou em vigor no dia 1º de agosto e traça as diretrizes para o desenvolvimento da cidade, deixou de fora o mapa de ruídos, vetado pelo prefeito Fernando Haddad (PT). Entre os fatores que podem ter desestimulado o governo estaria o prazo de um ano, considerado insuficiente para a tarefa.

“Um ano, para uma cidade como São Paulo, é realmente pouco tempo. Mas dá para fazer um piloto em um bairro predeterminado. Apesar do veto do prefeito, nós, da ProAcústica, em conjunto com a Câmara Municipal, a Cetesb (Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental), o IPT (Instituto Brasileiro de Pesquisas Tecnológicas), a SPTrans (São Paulo Transporte), a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e o Sinduscon (Sindicato da Construção de São Paulo), estamos batalhando para implementar um projeto piloto”, afirma Akkerman.

Segundo ele, para mapear por inteiro a São Paulo seriam necessários, no mínimo, cinco anos.