Psiu! A ciência do silêncio
Fonte | Saúde Business – Home – SP – Online – 26/04/2022
Autoria | Guilherme Hummel – Coordenador Científico da Hospitalar Hub
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Ruídos nos sufocam como um cobertor de arame farpado
Um dos lugares mais silenciosos da Terra é uma câmara anecoica no Laboratório Orfield, em Minnesota. É tão silenciosa que ninguém suporta mais de 45 minutos em seu interior. A sala tem ruído de fundo perto de -9,4 dB (decibéis negativos). Sem som externo ou interno, a única coisa que se ouve em seu interior é o próprio corpo. Ouve-se o coração batendo, os ‘gemidos’ dos pulmões e a barulheira polifônica do estômago. Na câmara anecoica, você é o som. Pessoas não apenas ouvem seus batimentos cardíacos, como também têm dificuldade de se orientar e até ficar de pé. Como nos orientamos por meio dos sons (que você ouve quando anda), na câmara você não tem nenhuma pista. Se ficar lá por meia hora terá que estar sentado em uma cadeira. Ou seja, trata-se de uma “sala de tortura”, onde você é obrigado a escutar seu corpo e nada mais do que ele, e isso pode levá-lo a loucura.
Ninguém precisa chegar a esse nível de ‘ausência de som’ para encontrar paz, tranquilidade e um nível razoável de mindfulness (atenção plena). Mas que está cada vez mais difícil encontrar qualquer nível de silêncio em nosso século é inegável. “O caminho para todas as grandes coisas passa pelo silêncio”, escreveu Nietzsche. Pobre filósofo, vivesse no século XXI perceberia que o silêncio é uma ‘mercadoria’ em extinção. Paga-se bem para morar perto dele, embora já seja um ‘artigo de luxo’ nas grandes metrópoles. Ondas sonoras vibram os ossos do ouvido transmitindo movimento para a cóclea (em forma de caracol), que, por sua vez, converte as vibrações físicas em sinais elétricos que o ouvido percebe e faz o corpo reagir imediatamente (mesmo em meio ao sono profundo). Essa engenharia sonora nos permite ouvir, participar, interagir e aprender. Mas, da mesma forma, o silêncio tem tanta importância em nossa vida quanto o som. Um estudo de 2013 descobriu que quando ratos foram expostos a duas horas de silêncio por dia desenvolveram novas células cerebrais no hipocampo, a região cerebral associada à aprendizagem, emoção e memória. Em outras palavras, o silêncio pode literalmente fazer nosso cérebro crescer. Por outro lado, em 2011, a OMS examinou e quantificou a carga de saúde na Europa. Concluiu que os 340 milhões de habitantes da Europa Ocidental (população dos Estados Unidos) estavam perdendo um ‘milhão de anos de vida saudável a cada ano, devido ao ruído’.
No Renascimento, o ‘poder de silenciar’ era “pré-condição para a oração”, para o contato com o transcendente, com a espiritualidade, uma espécie de ignição para acender um “fogo interior da alma”. Para muitos, o silêncio é o nada. Para outros, como o filosofo suíço Max Picard (1888-1965), o silêncio possuí sua própria realidade: “O silêncio não é a mera ausência da fala ou do som. É um mundo positivo, completo em si mesmo. Ele já estava lá primeiro, antes de todas as coisas. É como se a floresta crescesse lentamente quando, de repente, um pássaro canta. Seu som não é dirigido contra o silêncio; é um olhar brilhante que sai do olho do próprio silêncio por sobre a floresta”. Picard era particularmente ranzinza com o rádio. Para ele, a vida moderna com seus incessantes zumbidos e parlatórios destruiu o silêncio, tornando-o “simplesmente o lugar em que um ruído ainda não penetrou, ou uma mera interrupção na continuidade do ruído”. Escrevendo em 1948, ele lamentou que “o silêncio não existisse mais como um mundo, como um cosmo, mas apenas como fragmentos, como restos do mundo. E como o homem se assusta com tudo o que não é inteiro, completo e integro ele se assusta com os restos do silêncio que aqui e ali ainda persistem”.
Pessoas buscam o silêncio, ou fogem dele, mas nunca ficam indiferente a ele. Durante o século III, pregar no deserto em total silêncio era um dever sagrado; no século VI, Bento de Núrsia o incluiu em sua Regra para Monásticos. No Islã, existem escritos de sabedoria sobre a importância de encontrar o silêncio interior. No Budismo, as descrições de silêncio são frequentes, permitindo que por meio dele a mente alcance uma luminosidade espiritual. Pirkei Avot, a Ética dos Pais, livro-guia dos sábios rabinos judeus, relata que o silêncio é uma ‘cerca de segurança para encontramos a sabedoria’. Em todos os credos, culturas e estágios da civilização o silêncio foi o meio para encontrarmos nosso elo com o mundo, nosso significado e nossa imanência.
Ocorre que devido a sua escassez, ele passou a ser cada vez mais estudado. A psicóloga clínica Amy Sullivan (Director of Behavioral Medicine da Cleveland Clinic) explica: “Quando estamos exaustos, nossa resposta de luta ou fuga está sobrecarregada, causando uma série de problemas. Momentos calmos e tranquilos exploram uma parte diferente do sistema nervoso que ajuda o indivíduo a desligar a resposta física ao estresse”. Isso significa que ficar quieto e em silêncio nos momentos de extenuação e esgotamento pode: (1) baixar nossa pressão arterial; (2) reduzir a frequência cardíaca; (3) diminuir a tensão muscular e (4) aumentar o foco e a cognição. Ou seja, o silêncio e a quietude premeditada têm valor terapêutico e podem evitar o desencadeamento de inúmeras patologias. Mas é simples ficar em silêncio? Não, pelo contrário. Além das dificuldades de se encontrar ambientes de ausência sonora, protegidos de ruídos e vozes, existe também o mantra cultural. Os norte-americanos, por exemplo, tendem a lutar contra a quietude. Sim, acolher o silêncio tem um forte componente sociocultural. Na América, o FOMO (fear of missing out), o famoso “medo de perder” ou “medo de ficar de fora” é profundo e atávico. Uma parcela significativa da população costuma usar estímulos externos (como dispositivos de audio, mídias sociais, jogos escapistas, etc.) para se “distrair de pensamentos ou sentimentos pessoais desconfortáveis”. O silêncio faz emergir uma espécie de ‘espelho d’alma’, um encontro com nossa própria significância ou mediocridade. Culturalmente, é mais “fácil” administrar o tédio por meio de atividades criativas e alienantes do que com práticas de meditação. “Aprender e treinar a ficar quieto, em silêncio, e refletir sobre si mesmo é um dos maiores presentes que podemos nos dar”, diz Sullivan. “Quando olhamos internamente e nos aprofundamos em nosso sistema de valores, desejos e necessidades, podemos nos comunicar com o mundo em um nível mais profundo”, argumenta ela. Nesse sentido, os introvertidos podem estar mais bem posicionados para apreciar momentos tranquilos e serenos. “A sociedade tende a valorizar os extrovertidos porque eles são mais vocais ou melhores comunicadores. Mas temos que reconhecer que os introvertidos processam as informações promovendo mais a criatividade e a resolução de problemas. O motivo é simples: falam menos e ouvem mais, e há um enorme valor nisso”, completa Sullivan.
Sim, falamos muito e ouvimos pouco. O filósofo e escritor espanhol José Miguel Valle, autor de várias obras, como “Filosofía de la Negociación” (2014), “La capital del Mundo es Nosotros (2016), “La Belleza del Comportamiento”, entre outras, dedica-se ao estudo e análise da interação humana. “O homem é o único animal que fala. Essa característica distintiva não serviria para nada se não fôssemos simultaneamente o animal ouvinte. Muitas vezes dizemos erroneamente que as pessoas adoram falar, mas o que acontece é que adoramos ser ouvidos”, explica Valle. Ele tem razão: nunca ouvimos ninguém lamentar que “aquela pessoa me ouve tanto que me dá tontura”, ou “ouve pelos cotovelos”, ou mesmo “ao ouvir não tem moderação”. Em seu livro “El triunfo de la inteligencia sobre la fuerza” (2018), ele explicita que prefere ouvir a falar (“porque o que vou dizer já sei de cor, mas não sei o que vão me dizer”). Embora isso seja verdade (“ouvir permite novas aprendizagens e coloca-nos em contacto com a heterogeneidade”), falar continua a nos dar muito mais prazer do que ouvir. Nas tribos arcaicas, a maior punição que poderia ser infligida a alguém era a expulsão, quando um membro era separado e condenado a não ter ninguém para ouvi-lo. É a ausência de um ouvinte que caracteriza definitivamente a solidão. Ao contrário do “penso, logo existo”, Valle propõe: “você me escuta, logo existo”. Ouvir é um talento que não está ao alcance de todos e não é porque seja difícil, mas porque é uma virtude que não se pratica. Essa relação de falar mais-ouvir menos cobrou seu preço: o silêncio está em franco extermínio.
Nações como a Finlândia, por exemplo, fizeram marketing com sua baixa densidade sonora (“feito à mão no silêncio finlandês”). Outrora considerado um país chato pela característica taciturna do povo, agora recebe cada vez mais ‘turistas-do-silêncio’, aqueles que desejam distância das zoadas, do alvoroço e dos estrondos barulhentos da vida urbana. Em 2011, o conselho de turismo finlandês decidiu realizar uma campanha promovendo o “silêncio”, algo que você pode perceber facilmente visitando o país. Junto com fotos de paisagens inspiradoras, eles usaram o slogan “Silence, Please!”. A agência VisitFinland, por exemplo, divulgou a campanha: “Em vez de dizer que está realmente vazio e muito quieto e ninguém está falando sobre nada por aqui, vamos abraçar o silêncio e distribuí-lo como uma coisa boa”. Ainda hoje o portal de turismo do país lembra sobre a importância do silêncio em seu cotidiano. O século XXI precisa de mais silêncio, sendo um fator crítico de sustentabilidade ambiental e social. Como escreveu Woody Allen: “Deus se mantém em silêncio. Agora, se ao menos o homem se calasse”.
Estudo do professor Gary W. Evans, da Universidade Cornell, mapeou os efeitos do ruído do aeroporto em crianças em idade escolar. A pesquisa mostrou que as crianças expostas ao ruído desenvolveram uma resposta ao estresse que, na verdade, as “levou a ignorar o ruído”. Ele descobriu que as crianças ignoravam tanto o ruído nocivo do aeroporto, quanto outros ruídos mais cotidianos, como a fala. O silêncio também afeta a nossa alimentação, para bem ou para mal. Recente estudo (“The sound of silence: Presence and absence of sound affects meal duration and hedonic eating experience”) relatou um experimento para investigar os efeitos de diferentes atmosferas sônicas (1) durante a refeição, (2) na ingestão e avaliação dos alimentos e (3) nas respostas ao ambiente sônico alimentar. Em um ambiente de cafeteria quase naturalista, os participantes estavam almoçando em uma das quatro condições: música lenta, música agitada, barulho de cafeteria e silêncio. Os resultados revelaram que os participantes que almoçavam expostos a algum tipo de som de fundo passavam mais tempo na refeição do que aqueles que comiam em silêncio. Em termos de ritmo da música, a música lenta prolongou a duração da refeição em comparação com a música rápida, mas não levou ao aumento da ingestão. A adequação e o gosto da atmosfera sonora foram positivamente correlacionados com o prazer geral da experiência de comer e o gosto da comida. As descobertas fornecem suporte para evidências existentes que documentam a importância do som ambiente nas experiências alimentares, fornecendo mais informações sobre como os indivíduos percebem e respondem aos ambientes de refeições com som ambiente.
Na verdade, a maior parte da energia de nosso cérebro é direcionada para funções automáticas, como manter a consciência em nosso entorno e desenvolver associações cognitivas. Comparativamente, pouca energia cerebral é colocada em tarefas complexas, como aritmética avançada ou avaliar com destreza porque o cônjuge está de mau humor há semanas. Um pouco como o metabolismo em nosso corpo, que queima a maioria das calorias através das funções naturais do corpo, e não por meio de exercícios intensos na academia. Meditar em um lugar calmo e silencioso permite que o cérebro otimize sua energia. Estudos científicos revelam modos distintos do cérebro. O Modo-Padrão, por exemplo, é ativado quando estamos em repouso silencioso (idealmente com os olhos fechados), com o corpo fornecendo mais sangue aos lobos frontais, interpretado como um aumento da atividade cerebral.
Um termo torna-se cada vez mais comum no estudo do silêncio: a neuroplasticidade. Trata-se da ‘capacidade do cérebro se transformar (se adaptar) em resposta aos estímulos aos quais somos submetidos’. Todos os dias somos expostos a vários tipos de estímulos, muitas vezes concomitantemente. Eles podem ser estímulos táteis ou auditivos. Estudos mostram pacientes com dor neural crônica ou doenças degenerativas, como Parkinson, aproveitarem o poder de suas próprias redes neurais para desenvolver mecanismos compensatórios para alívio dos sintomas. Pesquisas mostram que a atenção plena (mindfulness) facilita a reorganização do cérebro, dando-lhe espaço para se restabelecer com mais efetividade.
Da mesma forma, “ficar em silêncio conosco mesmo” nos faz perceber sinais sutis dentro de nossos corpos: padrões respiratórios, ruídos digestivos, dores camufladas ou quaisquer desequilíbrios musculoesqueléticos. A meditação silênciosa é o momento para fazermos nosso inventário interno. Um dos ‘fatores intimidantes do silêncio’ é que ele remove os mecanismos que suprimem pensamentos e emoções dolorosas. Ao preencher nossas vidas com distrações, somos capazes de evitar o processamento de traumas profundos ou superficiais. Empurrar para “debaixo do tapete” os pensamentos e emoções dolorosas mantém o cérebro em um nível elevado e continuado de estresse, impedindo que seus sistemas nervosos e musculares funcionem adequadamente. Quando não processamos conscientemente traumas ou pensamentos negativos, eles tendem a emergir em hábitos autodestrutivos. Freud explicou: quando falamos baboseiras nas análises terapêuticas, podemos denunciar um conteúdo latente, mas também o fazemos se nos mantivermos em silêncio, um silêncio que precisa ser escutado pelo analista, pois também nos conta uma história: ao mesmo tempo em que se apresenta como resistência, paradoxalmente, o silêncio denuncia territórios nos quais evitamos pisar, promovendo assim uma abertura para emergir o inconsciente. Fazer o trabalho duro de “sentar em silêncio” e permitir que pensamentos e emoções latentes venham à tona pode ser uma dor temporária a serviço de um bem-estar prolongado.
Mas o silêncio em si se basta? Não. Certamente que falar, expor, dialogar e se comunicar é também uma benção. O silêncio pode também ser como um câncer em crescimento. É de Pitágoras (570 a. C.) a expressão: “Cala-te ou deixa que tuas palavras valham mais do que o teu silêncio”. Quando as palavras são vazias, itinerantes, tolices ditas para preencher nossa mediocridade ou insanidade, o silêncio emerge e pede “lugar-de-fala”. “Vivemos governados por excesso de estímulos, amplificados por uma sociedade que encontra na exposição permanente a melhor forma de se esconder, isto é, de não pensar. Estranho modo de vida, este, que nos leva de ruído em ruído, preferindo o aborrecimento de viver à alegria de pensar”, expos o poeta e filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962). Pensar não pode ser uma trivialidade. Pensar e expressar com pertinência os pensamentos exige cautela, amor a palavra, querença de ser entendido, e acima de tudo, exige um desejo ardente de não ser confundido com um ‘ruído ordinário’. O silêncio é como um algoritmo codificando o melhor de você, a sua melhor frase e a sua mais contundente afirmação. É como se ele pudesse ouvir a sua voz interior antes dos outros. Na cacofonia dos ruídos, o máximo que conseguiremos é continuar seguindo como manada. É na calma do silêncio que somos capazes de atravessar o nosso deserto interior e nos transformarmos em labaredas, em fogo impávido, audacioso e sem limites, onde o medo e a insegurança tem pouco espaço para dominar. Assim, por favor: “silêncio, cérebros crescendo!”