Por uma política de redução de ruídos
Título | Por uma política de redução de ruídos
Fonte | Auris Produções e Comunicações
Autora | Cynthia Gusmão – cygusmao@uol.com.br
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Numa sociedade como a atual, tomada por problemas extremamente sérios como a desigualdade, a violência, o aquecimento global, é de se perguntar por que alguém é levado a lutar pela questão do conforto acústico. Aqueles que assumem essa batalha sabem que ela é uma questão que sempre é considerada menor, sem nenhum caráter de urgência.
No entanto, esse debate sobre redução de ruídos possui o efeito de uma alavanca. Quando mexemos nesse pequeno ponto, levantamos questões muito mais sérias do que a população em geral está acostumada a avaliar. Problemas ligados à saúde, ao trabalho, à educação, ao descanso, ao sono e ao lazer.
A gente descobre que existe uma gama enorme de problemas ligados ao ruído. E que ela afeta a todos, pois para a poluição sonora são pouquíssimas as barreiras eficazes. Ela tanto pode abalar silenciosamente a saúde física e mental das pessoas como produzir rompantes de fúria como os que temos acompanhado, cada vez mais comuns, inclusive com assassinatos tendo como causa o ruído excessivo. Nesse caso ela ultrapassa o problema de saúde, tornando-se uma grave questão social. Aliás, enquanto sociedade, vivemos uma situação esquizofrênica: se, por razões óbvias, uma pessoa não deve utilizar um equipamento de som que ultrapasse os decibéis recomendados pela Organização Mundial de Saúde, por que são fabricados e vendidos esses equipamentos, sendo até mesmo instalados em veículos? A questão do ruído, fulcral, extrapola o campo do direito individual passando para o campo do direito coletivo.
Vamos nos deter no âmbito da elaboração de políticas públicas.A OMS fornece os dados para o processo de constituição de políticas públicas no mundo. Uma das instituições mais importantes que trabalha com pesquisas e dados para a OMS é o ICBEN, International Comission on Biology Effects of Noise. Ela se divide em grupos e o Grupo 9 trata do tema específico das políticas públicas relacionadas ao ruído. No ano passado, 2012, esse grupo 9 publicou um diagnóstico na revista Noise&Health apontando a severidade dos problemas ambientais relacionados ao ruído nos países em desenvolvimento, refletindo a velocidade do crescimento econômico e industrial. Eles dizem uma coisa interessante: “No passado, as maiores causas de degradação ambiental ocorriam sequencialmente e não simultaneamente. No entanto, as cidades atuais dos países em desenvolvimento vêm sofrendo pressões de uma combinação de forças (por. ex, motorização, industrialização e aumento da densidade populacional). E cada uma dessas pressões tem uma intensidade muito maior do que tinha no passado, e esses países não possuem infraestrutura desenvolvida e recursos financeiros (mobilizados) para controlar o ruído ambiental. O resultado é que a capacidade de muitas cidades de enfrentar essas pressões combinadas é cada vez mais difícil, levando a uma deterioração da qualidade ambiental nesses países emdesenvolvimento e resultando em impactos negativos crescentes para os seus cidadãos”. (Finegold, Schwela e Lambert, “Progress on noise policies from 2008 to 2011”. In Noise&Health, no. 14, 2012).
Resumindo, numa sociedade pós-industrial, que se entope de tecnologia, a legislação está sempre atrás, aquém das novidades tecnológicas desse mundo acelerado. Vivemos uma invasão de carros, helicópteros, motos, aviões, alarmes, celulares, refrigeradores, eletrodomésticos, guindastes, bombas d’água, sem contar e a amplificação sonora ou musical de todo o tipo. Então, que recursos a sociedade pode acionar em relação aos poderes públicos para se proteger? Uma boa notícia é que existe tecnologia para tornar todos essa aparelhos muito menos ruidosos. Se a tecnologia é um dos venenos nesse aspecto, ela também tem condições de fornecer o antídoto. Não é a tecnologia a culpada e sim as condições de seu uso. O que falta é agregar os diferentes atores sociais de forma a articular políticas públicas condizentes com o problema, criar mecanismo eficazes aplicação da legislação e mobilizar a sociedade para cumprir a lei exigir que ela seja cumprida.
Agora, para que isso aconteça é preciso que as pessoas saibam que a ausência de conforto acústico prejudica a saúde, o desempenho escolar, a atuação profissional, afeta a segurança de uma cidade. Precisa saber que numa UTI o nível de ruído é um dos fatores que dificultam a recuperação dos pacientes; saber que se o seu filho estuda numa sala de aula ruidosa, com paredes duras que refletem o som, com carteiras que produzem um barulho quando arrastadas na mesma faixa de espectro da fala do professor, evidentemente haverá uma perda significativa no seu aprendizado, quando não da sua audição. E assim poderia seguir dando exemplos.
Desde 2004, as diretrizes sanitárias da Comunidade Européia envolvem a avaliação e gestão do ruído no meio ambiente, e são elaborados planos de ação para proteger e informar o público. Um grupo importante, nesse aspecto do ruído, é o do governo francês, por meio da sua Agência de Segurança Ambiental Sanitária. No seu relatório de impactos do ruídos de 2004, no capítulo « Efeitos Biológicos extra-auditivos do ruído » são apresentados dados sobre perturbação do sono e suas consequências para a vida cotidiana, e também os efeitos sobre o sistema endócrino e cardiovascular. No caso do problemas cardiovasculares, há comprovação da aceleração da frequência cardíaca e da diminuição do calibre das artérias, provocados pelo ruído intenso. E o que chama a atenção é que eles avaliaram esse tipo de efeito do ruído em pessoas que não se incomodam com o ruído. Esses dados vieram a partir de pesquisas com crianças, que dormem normalmente, mesmo com barulho, e ficou demonstrado que a pressão arterial delas sofreu alteração da mesma maneira, na medida em que isso é uma resposta fisiológica do organismo.
Quanto aos efeitos dos ruídos excessivos no sistema endócrino, o relatório francês diz : « A exposição ao ruído produz uma modificação da secreção dos hormônios ligados ao stress que são a adrenalina e a noradrenalina » (p. 167). E, por causa disso, uma das consequências da exposição ao ruído intenso pode ser o ataque ao sistema imunológico. Por fim, o ruído também é apresentado como um dos principais problemas para pessoas com quadro de ansiedade e depressão.
Enfim, o que temos que nos perguntar é: por que os problemas com ruído vêm crescendo e parecem estar fora de controle? E por que ele não é visto como um problema sério de saúde pública, muito embora o efeito negativo do ruído na saúde seja documentado há décadas?
Como superar uma concepção antiquada dos efeitos do ruído, que emana de um mundo acústico pré-industrial e pré-eletrônico? Temos de rever o conceito de som, ruído e silêncio, atualizar nossos mecanismos de medição de ruído e vibração, construir formas de gestão do espaço sonoro que mais que nenhum outro é público, ultrapassando demarcações. Temos também de sensibilizar um número crescente de pessoas e setores da sociedade para que entrem nesse debate. É preciso tornar compreensíveis e acessíveis pesquisas e informações técnicas para o público em geral.
Mas temos também de ter claro que redução de ruídos muitas vezes significa colisão com interesses econômicos. O escritor americano Garret Heizer diz que, em geral, quem descarta a questão do ruído como algo irrelevante é aquele que o está produzindo. Eleaponta que frequentemente essa questão, tão pequena, afeta mais os pequenos ou aqueles que estão numa posição mais fraca. Isso é verdade para os vizinhos intimidados pelos traficantes que comandam o pancadão na periferia de São Paulo ou para os cidadãos como um todo, por exemplo, intimidados pelos ruídos automotivos públicos e privados. Essa é uma questão que perpassa toda a sociedade e é urgente que adotemos os meios possíveis para reduzir as perturbações sonoras construindo uma verdadeira política contemporânea e eficaz de redução de ruídos.