O projeto do “novo” Teatro Cultura Artística elegeu a acústica como fundamental, que o torna um espaço de excelência internacional
Em depoimento para o ProAcústica News, José Augusto Nepomuceno, descreve em detalhes o trabalho de reconstrução e o projeto de acústica do Teatro Cultura Artística. Tomado por um incêndio em 2008, o teatro – um ícone para a cultura de São Paulo – completou 112 anos e foi reaberto em 2024 com uma programação diversificada e de alta qualidade. O projeto de arquitetura foi assinado pelo arquiteto Paulo Bruna e conta com duas modernas salas de espetáculos, mantendo alguns detalhes do prédio original.
“No dia 17 de agosto de 2008 São Paulo acordou com uma notícia horrenda: o Teatro Cultura Artística ardia em chamas. Plateia e palco de um dos mais importantes teatros do Brasil, ícone da arquitetura moderna, inaugurado em 1950, estavam em quase completa ruína. Poucos dias depois recebemos um telefonema do Arq. Paulo Bruna nos convidando para colaborar no projeto de reconstrução – um processo que durou 16 anos.
Do prédio original restavam, como testemunhas da grandiosidade do Cultura, o mural de Di Cavalcanti “Alegoria das Artes” e o Foyer. Visitar o local nas semanas que seguiram ao incêndio era uma experiência de desolo absoluto.
Após quase duas décadas, duas versões de projeto descontinuadas e uma versão definitiva, o Teatro Cultura Artística foi reaberto em 03/08/2024 com a Orquestra Sinfônica Municipal conduzida por Roberto Minczuk, em concerto para convidados e colaboradores da obra. Em 28/09, o Teatro foi aberto ao público com um concerto da Orquestra de Bremen, dirigida por Tarmo Peltokoski, contando com a participação do jovem pianista Jan Lisiecki. Desde então a acústica do local recebeu entusiasmados elogios de artistas, crítica e público.
Salvo o Foyer e o mural, tudo no local é novo inclusive o programa. O Cultura agora é focado na apresentação e estudo da música. O Teatro abriga dois espaços de apresentações, a Sala Principal e o Auditório, salas de prática de música, além de camarins, área administrativa, central de utilidades e apoio. Os dois espaços de apresentação são diferentes da construção anterior em volumetria e uso. A Sala Principal, por exemplo, não tem mais uma caixa cênica.
O grande obstáculo a se vencer nestes projetos não é apenas técnico, mas, sobretudo, na esfera da gestão e tomada de decisão. Ainda que existam mudanças nos últimos 20 e poucos anos, na tradição projetual da América do Sul os profissionais de acústica ainda são convocados tardiamente e para colaborar em projetos com volumetrias definidas e consolidadas. É o primitivo, redutor e reduzido conceito de “tratamento acústico”. Há mais de 60 anos a acústica define volumetrias e partidos de projeto de salas de música e teatros em países como Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Japão, entre outros. Afinal, os acústicos são os luthiers do espaço construído.
Frederico Lohmann, superintendente da Sociedade de Cultura Artística, capitaneou o projeto de reconstrução do Teatro e em todos os seus detalhes. Partiu dele a decisão de dar continuidade ao caminho aberto recentemente no Brasil com a Sala São Paulo e, posteriormente, na Sala Minas Gerais, colocando a acústica no topo da decisão dos aspectos espaciais da Sala. A decisão de perseguir obsessivamente a excelência, sem concessões, fez toda a diferença. Esta postura está diretamente relacionada com os resultados muito positivos: se estamos falando de um instrumento musical, convoquem a luteria!
A versão definitiva do projeto e programa é de 2016. E o desenvolvimento da Sala Principal incluiu dois caminhos que andaram quase que simultaneamente: um em formato assimétrico e conceito híbrido (entre sala retangular e de patamares) e o segundo dentro da lógica de uma sala retangular. Acabou prevalecendo a sala com formato retangular.
Sala Principal
Classificamos a Sala Principal como uma sala de recitais, uma tipologia particular que se situa está entre as pequenas salas de música de câmara e as grandes salas de concertos sinfônicos. As salas de recitais têm capacidade entre aproximadamente 500 e 950 lugares, palco para conjuntos de pequeno e médio porte. A literatura dedicada às salas de concertos ou salas de câmara é bastante superior àquela dedicada a salas de recitais.
A Sala Principal tem 750 lugares e palco com 120 m2 e está no mesmo universo de espaços como Mozartsaal, no Centro de Congressos de Stuttgart; Juliet J. Rosch, na SUNY em Fredonia; a Sala de Música de Câmara, na Berlin Philharmonie; Zankel Hall, no Carnegie Hall; Hamarikyu Hall, em Tóquio; Alice Tuly Hall, em Nova York; Sala de Recitais do New World Symphony, em Miami; Jordan Hall, no New England Conservatory, entre outros.
Vista para o palco na Sala Principal e Vista do palco para plateia da Sala Principal
Fotos e ilustrações: Acústica & Sônica
No Brasil, dois exemplos muito importantes neste universo são a Sala Cecilia Meireles com 670 lugares e a Sala de Música de Câmara com 439 (atualmente batizada como Teatro de Câmara) na Cidade das Artes Bibi Ferreira, ambas no Rio de Janeiro. Uma comparação entre a versão hibrida do Cultura e estas salas está nas figuras abaixo.
Quando comparamos as dimensões da Sala Principal do Cultura com salas de concertos sinfônicos ou salas de câmara “consagradas”, as diferenças dimensionais são impressionantes.
A Sala Principal se desenvolve em uma plateia principal, duas plateias laterais ligeiramente elevadas e um balcão mezanino que circunda a sala. Tem um volume de aproximadamente 6800 m3 e uma relação entre volume e número de assentos de 9 m3. O espaçamento entre poltronas é 0.95 m, num balanço entre conforto e controle da relação entre volume e área de assentos. O pé direito é 13 m do piso do palco, que tem altura 0.90 m. A largura da plateia é 21 m. O comprimento na área mais elevada da Sala é 37 m e na plateia inferior de 25 m.
Acima do palco foram instaladas três linhas de difusores suavemente convexos para espalhamento sonoro e que permitem algum ajuste na sua altura e inclinação com relação ao piso do palco. As poltronas são medianamente estofadas e com encosto de madeira.
O palco é circundado por uma construção de ripas de madeira maciça com abertura entre elas. Este lambri se conecta com a área de backstage por portas. Dependendo da combinação de aberturas destas portas, as características acústicas no palco se alteram. Testes de escuta antes da inauguração com a Sinfônica de Heliópolis, conduzida pelo Maestro Edilson Venturelli, mostraram a potência destes ajustes.
O desenvolvimento da Sala Principal foi feito com intensa utilização de modelagem acústica computacional e maquetes físicas. As avaliações acústicas objetivas serão realizadas em 2025 e ficarão disponíveis para pesquisadores.
Tipos de vedações adotadas
Duas áreas fazem contato direto com o exterior e são construídas em concreto: a parede na região do palco e a cobertura. As demais vedações são em alvenaria de bloco de concreto de 19 cm de espessura. Os contornos construídos em blocos estão confinados por espaços laterais de uso diverso, que promovem atenuação sonora com relação ao lado externo. A ilustração mostra como diferentes tipos de vedações foram adotadas no projeto. A estrutura da Sala é separada do restante da edificação por meio de aparelhos de borracha natural para reduzir as transmissões de ruído estrutural.
As máquinas de ar-condicionado são instaladas fora do envelope da Sala. O insuflamento e retorno são feitos por trajetos relativamente longos e revestidos internamente com lã de vidro especial para esta finalidade, com 20 mm de espessura e 50 kg/m3. A velocidade de ar nas terminações foi limitada a 1,2 m/s e os difusores são todos acusticamente classificados. O nível de ruído de fundo com sistema de ar funcionando está abaixo de NC-17.
Todos os acessos são feitos por antecâmaras para minimizar a transmissão de som dos espaços externos.
Um aspecto muito particular na Sala Principal é a aplicação dos elementos de difusão sonora. Se o espalhamento sonoro é reconhecidamente importante, ele deve ser dosado com extremo cuidado. O excesso de difusão pode reduzir a clareza do som e a qualidade dos sons de baixas frequências.
A aplicação de difusão na Sala resulta de uma colaboração da equipe de acústica com a artista Sandra Cinto, que já estava envolvida na instalação de peças no Teatro como as tapeçarias do Foyer. Como esperado, a criação das peças de difusão caminhou por diferentes territórios passando por formatos ortogonais até chegar às curvas fluídas e orgânicas.
Ao invés da aplicação de topografias acústicas derivadas de conceitos rígidos – muito comuns em estúdios de gravação – a colaboração com Sandra Cinto permitiu uma abordagem livre. Este processo colaborativo resultou na identidade visual e aural da Sala. Peças de difusão pensadas sem as amarras tradicionais dá continuidade de conceito explorado pelos acústicos contemporâneos e já aplicado anteriormente pelos autores no Ordway Concert Hall, em Saint Paul, nos EUA. As dimensões das peças foram definidas para atendimento à acústica considerando espaçamento, altura, largura e ritmo. As peças são fundidas em gesso e foram supervisionadas pela artista.
A intervenção na Sala Principal é visualmente tão impactante como os móbiles de Alexander Calder instalados no forro da Aula Magna de Caracas, projeto de Carlos Villanueva dos anos 40 e construído em 1953. Os móbiles foram desenvolvidos para correção acústica com a consultoria de Robert B Newman – mentor de toda uma geração de acústicos. No caso do Cultura, as peças de Sandra Cinto não “corrigem” uma questão da volumetria, mas participam da resposta acústica, ou, melhor, da escuta musical no local. O resultado é uma sonoridade envolvente e presente, graças ao balanço entre som direto e reflexões difusas.
Auditório
O Auditório está sob a Sala Principal e acomoda 120 pessoas. Ele é dedicado a workshops, concertos solos de violão, piano e música leve amplificada. Ele tem uma área de 185 m2, dos quais 63 m2 são área de palco. O palco está na cota zero do Auditório que desenvolve uma plateia relativamente inclinada. A altura do Auditório varia entre 5,0 m na região do palco e 2,40 m no acesso da plateia, totalizando 800 m3 e relação de 6.7 m3 por assento. Este espaço é isolado acusticamente da Sala Principal com forro e paredes duplas de gesso e fixadas por meio de clips resilientes nas estruturas.
Não especificamos elementos acústicos específicos e consideramos que a volumetria do Auditório, inclusive a inclinação da plateia, responderia de forma adequada para o programa de apresentações solo. Importante ressaltar que o local tem recebido críticas muito positivas para concertos de violão.
O Auditório é comparável em suas dimensões, programa e implantação a pequenas salas como o Espaço Guiomar Novaes, na Sala Cecília Meireles, Sala I na Cidade das Artes, ambas no Rio de Janeiro, e o espaço Mary Flager Cary Hall, no Dimenna Center em Nova York.
Salas de estudo
O Teatro conta ainda com 4 salas de estudo e prática com áreas de aproximadamente 30 m2 a 33 m2 cada. Elas são construídas com paredes de bloco de concreto com 9 cm de espessura e contra parede de gesso acartonado duplo e fixada na alvenaria por clips resilientes. Foi especificado painel de madeira ranhurado e perfurado formando dentes irregulares para aplicação nas paredes. O forro é composto por blindagem com gesso duplo pendurada com hangers e forro acústico mineral com NRC >0.85. Para completar o programa educativo do Teatro, foram construídas salas de prática individual e que podem ser utilizadas como camarim.
A Sala Principal e Auditório são dotados de infraestrutura de iluminação cênica, áudio e vídeo. A Sala Principal conta com um sistema de ajuste acústico em implantação.”
Nota: as dimensões citadas são aproximadas.
Depoimento de José Augusto Nepomuceno, diretor da Acústica & Sônica
Ficha Técnica
Cliente: Sociedade de Cultura Artística
Sala Principal
Projeto e acústica: Acústica & Sônica / Akustiks. Líder de Projeto: José Augusto Nepomuceno. Consultores: Júlio Gaspar, Christopher Blair, Paul Scarbrough.
Escultura acústica: Sandra Cinto e consultoria acústica de Júlio Gaspar e Christopher Blair.
Auditório
Acústica: Acústica & Sônica / Akustiks. Líder de Projeto: Júlio Gaspar. Consultores: José A. Nepomuceno, Christopher Blair, Paul Scarbrough.
Áudio e vídeo, iluminação cênica e cenotécnica: Acústica & Sônica. Autor: Júlio Gaspar.
Arquiteto do Projeto: Paulo Bruna
Estrutura: Kurkdjian e Fruchtergarten, Júlio Fruchtengarten.
Ar-Condicionado: Thermoplan
Construtora: HTB