Uma luta contra o ruído e a favor da cidadania e da saúde
Criadora do movimento popular ‘Ouvido no Ruído’, a fotógrafa Fernanda Coronado precisou percorrer uma trajetória infindável de reclamações e sofrer retaliações dos poluidores, até o combate à poluição sonora se tornar uma causa pela qual ela pretende lutar a fundo.
A fotógrafa profissional, Fernanda Coronado, abraçou a causa do combate ao ruído na cidade de São Paulo. Determinada e inconformada com a falta de políticas públicas integradas para combater esse grande problema urbano. Também estudante de engenharia civil, ao se deparar com barulho em sua vida, decidiu direcionar a atenção para esse assunto no meio acadêmico com o propósito de se aprofundar o tema da poluição sonora. Foi atingida pelo problema no bairro em que reside atualmente, a Lapa, zona oeste de São Paulo, devido a uma boate e também a um bar que funcionam próximos à sua casa. Sofreu retaliações e ameaças por simplesmente querer seu direito ao sossego ser respeitado.
Percorreu os diversos caminhos a fim de denunciar e resolver os problemas e percebeu que, além de difícil, o trajeto é perigoso e, muitas vezes, frustrante. Aprendeu muito, frequentou os Consegs, a Subprefeitura, chegou à Comissão de Política Urbana e, finalmente, à ProAcústica e ao gabinete do vereador Andrea Matarazzo, que aprovou um Projeto de Resolução para instituir a I Conferência Municipal sobre Ruído, Vibração e Perturbação Sonora, que será realizada nos dias 28, 29 e 30 de abril.
Criadora do movimento popular Ouvido no Ruído, nascido há cerca de um ano, agora, Fernanda vai participar como palestrante da Conferência no Painel “Por uma política pública para redução, gestão e controle de ruídos urbanos”, em que pretende propor ao poder público transferir o tema da poluição sonora para a Secretaria do Meio Ambiente. Leia a seguir a história de Fernanda e suas ideias para combater esse mal, que vem se tornando um tormento para os moradores das grandes cidades.
Quando você se deu conta que o ruído era um problema que incomodava?
Na verdade, venho notando que de uns dez anos para cá, a questão do ruído de vizinhança vem tomando proporções maiores em São Paulo e em várias grandes cidades brasileiras. A primeira vez que me deparei com a questão do incômodo foi quando eu mesma o causei inadvertidamente. Eu sempre gostei de música e comecei a produzir shows para um barzinho. Soube que não havia pessoas morando perto do local. Os shows aconteciam num porão e, de fora, quase não se ouvia nada. Mas um dia chegou a polícia dizendo que havia uma queixa de moradores próximos. Desculpei-me com esses vizinhos e nunca mais produzi eventos musicais.
Então, você acha que nesse episódio houve uma conscientização sua sobre a questão?
Sim. É curioso como as pessoas não se dão conta que estão causando incômodo, ou até mesmo que estão sendo incomodadas pelo ruído, a não ser que ele seja muito forte. No dia a dia não há uma percepção clara dos ruídos. Conversando com as pessoas, elas relatam que a buzina incomoda, a aceleração do ônibus, o caminhão, a moto que faz barulho, enfim que o ruído urbano tem efeito sobre elas. Comigo, um incidente marcante ocorreu no prédio em que morava, onde usavam lavadora de alta pressão com muita frequência. Eu morava no segundo andar e o barulho era insuportável. Reclamei e nada.
Até que levamos o tema para a reunião de condomínio e percebi que todos estavam incomodados. A lavadora de alta pressão passou a ser utilizada bem menos. No mesmo prédio, tive um exemplo oposto. Havia um morador que toca oboé numa importante orquestra de São Paulo e que ensaiava sempre no mesmo horário, mas nunca excedia os limites. Em conversas de elevador ele sempre perguntava se estava incomodando. Enfim, outra atitude. A maioria dos incômodos relativos a ruído pode ser resolvido com uma boa conversa. Porém, é bom que se converse com respeito para que o causador do barulho não se sinta ofendido e passe a colaborar com a comunidade.
Mais adiante você começou a enfrentar sérios problemas por causa de ruído. O que aconteceu?
Há quatro anos mudei para o bairro da Lapa e notei que a movimentação nas noites de sexta, sábado e domingo eram diferentes. De segunda a quinta o bairro é uma delícia de tranquilo. Mas, na sexta começavam os problemas. O som de música eletrônica invade minha casa somando-se ao trânsito maior, buzinas, som alto em carros, gritarias por toda a noite. Tornou-se impossível ter um sono de qualidade. Isso afeta minha vida em todo o resto da semana.
Ao tentar contato com o dono do local, falei sobre o barulho e sugeri que ele criasse uma campanha educativa junto aos seus clientes. Como sempre acontece nesses casos, ele disse que só eu estava reclamando. Descobri depois que já havia uma ação no Ministério Publico contra eles desde 2007, com as mesmas reclamações. Depois disso, soube que providenciaram isolamento acústico, mas não resolveu, pois é comum deixarem a porta aberta para uma área externa que existe nas dependências do estabelecimento, e que dá acesso a uma piscina. Quando a fiscalização chegava tínhamos a impressão de que eles fechavam as portas e o ruído se reduzia. A pedido do Ministério Público fiz um novo abaixo assinado entre os moradores incomodados e o MP decidiu instaurar um novo Inquérito civil. Depois que criei o movimento Ouvido no Ruído, em 2013, começaram a chegar emails de mais vizinhos pedindo ajuda para lidar com a mesma boate. Esses moradores estão se articulando para mais uma investida ao Ministério Público, pois os contatos que fizeram com os donos também não surtiram efeito.
Mas você também teve que enfrentar outro problema.
Sim, nesse meio tempo, um pessoal abriu um espaço para motoqueiros em uma área de estacionamento aberto, um lava rápido de motos que acabou virando balada a céu aberto. Começaram a colocar banda de rock ao vivo, fazer festas, causando mais um grande problema com ruído. Adoro rock and roll, eu também toco guitarra. Só que todos os dias, desde as 20h00 era som alto. Fui até lá para conversar com o dono, mas não teve acordo. Dai acabou o sossego e eu tive até que trancar a faculdade, pois não conseguia estudar. Conversamos com os vizinhos próximos sobre a questão e muitos estavam na mesma situação; não dormiam, estavam irritados, relataram que tinham que colocar a cama na sala, ou em outro local da casa, enfim complicou a vida das pessoas.
Esses empresários começaram a ter atitudes agressivas, sentindo-se no direito de fazer barulho. Frequentadores do bar tentavam nos intimidar fazendo com ruído com escapamento esportivo em frente às casas. O caso acabou na polícia, pois a ação do PSIU foi muito demorada. Prestamos queixa e tiveram que pagar uma multa de R$ 300,00. Por fim, conseguimos que o PSIU fechasse o estabelecimento. No entanto, eles mudaram para meia quadra dali e começaram tudo de novo, com outro CNPJ. A história ainda não acabou, mas o novo dono parece ser uma pessoa mais consciente que só precisa de orientação.
Você também enfrenta diariamente a poluição sonora causada pelos helicópteros, cuja rota passa pelo seu bairro?
Sim, é terrível. Você esta sendo gentil em dizer que passa pelo bairro onde eu vivo. A meu ver, o transporte aéreo precisa se organizar urgentemente, pois está interferindo na qualidade de vida de toda a cidade. Muitas vezes, no horário de pico dos voos, no começo da manhã e final do dia, não consigo falar ou ouvir o telefone. Uma das Conselheiras Participativas da região de Campos Elíseos relatou que foram mais de 80 helicópteros em uma hora. Ela é violinista e está tendo problemas para ensaiar. A cidade chegou num ponto insuportável. E então me perguntei: por que comigo? Mas aí você descobre que é com todo mundo, que é uma questão coletiva de cidadania, que tem muita gente lutando contra o problema. A minha personalidade também é essa, tenho uma característica de lutar pelas coisas, de me envolver nos processos que visam a cidadania e a educação.
Como você fez contato com a ProAcústica e com a Câmara Municipal e passou a fazer parte da Comissão Técnica que vem preparando a I Conferência Municipal sobre o tema?
Tudo começou com a questão da boate. Procurei várias vezes a Subprefeitura da Lapa e os diversos subprefeitos que passaram por aqui me explicaram que não tinham bases previstas na legislação atual para atuar em relação a diversos casos de ruído. Muitas pessoas que já lidavam com o assunto me explicaram que a legislação precisava
ser modernizada, para que as novas características de poluição sonora também fossem previstas em lei. Um exemplo são as baixas frequências, emitidas por subwoofers instalados em carros, nos pancadões e nas boates, que acentuam os sons graves.
Um amigo indicou a ‘Comissão de Políticas Urbanas, Metropolitanas e do Meio Ambiente’ da Câmara Municipal e comecei assistir as reuniões. Foi aí que ouvi o vereador Andrea Matarazzo lançar um debate sobre ruído no INAD (Dia Internacional de Conscientização sobre o Ruído), no dia 24 de abril do ano passado, mencionando o Projeto de Resolução 18, desenvolvido por seu gabinete para instituir uma Conferência e discutir a poluição sonora em São Paulo.
Ao assistir a reunião sobre ruído de 2013, conheci então o Davi Akkerman, presidente da ProAcústica, o pessoal da Cetesb, além de me aproximar da equipe do PSIU. Soube também de outras pessoas dedicadas a combater a poluição sonora no Brasil, como o engenheiro Francisco Aurélio de Brito, da Secretaria do Meio Ambiente de Fortaleza, autor do livro Tolerância Zero. Aos poucos, convidei-os para a discussão no grupo que criei no Facebook. Esse grupo foi formado por diversos moradores de São Paulo, vizinhos, interessados em meio ambiente, membros de Conselhos como CADES e Conseg e tudo começou, basicamente, com outros munícipes que também tinham representação sobre poluição sonora no Ministério Público.
Desse grupo criamos o site e o movimento Ouvido no Ruído. Fizemos um evento na Subprefeitura da Lapa, em 23 de agosto de 2013, com o apoio e a iniciativa do subprefeito Ricardo Pradas, que vem desenvolvendo um bom trabalho de ouvidoria na região. O Projeto de Resolução do Andrea Matarazzo foi apresentado nessa reunião e ouvimos os vereadores Gilberto Natalini e Floriano Pesaro, que estiveram presentes. Logo na sequência, o PR 18 foi aprovado na Câmara e nos abriu esse espaço fértil para desenvolver um debate saudável. E a partir daí formou-se a comissão técnica preparatória para a conferência que será realizada agora em 28, 29 e 30 de abril. Sinto-me muito honrada de participar desse evento como representante da sociedade civil e quero fazer o melhor que puder.
Desde que você se envolveu no tema até agora, o que aprendeu sobre poluição sonora?
Agora que a Conferência Municipal é uma realidade, acredito que o que faltava era um ambiente para debate, a fim de promover a convergência entre os vários envolvidos, desde os poluidores, os incomodados, até os estudiosos, os técnicos e profissionais especializados. Eu não quero mais ir ao Conseg (Coordenadoria Estadual dos Conselhos Comunitários de Segurança) ou pedir à polícia para ir à porta da minha casa resolver uma denúncia de ruído, não quero mais discar 190! Isso não resolve e gera uma reação muito negativa, agressiva e retaliações dos poluidores. Hoje, eu recomendo às pessoas que não reajam com a cabeça quente, em caso de problema de ruído, pois a situação só piora. Recomendo registrar a queixa no site da PM (Ocorrência de Barulho) e também no SAC – Serviço de Atendimento ao Cidadão da Prefeitura, para gerar estatísticas e mostrar quais os locais mais problemáticos.
Temos que ter equilíbrio e inteligência para não gerar problemas ainda maiores. E buscar os canais institucionais sabendo que a solução não é imediata. Eu sei que as pessoas se sentem desamparadas, sem ter para quem apelar, pois vivo isso na pele. No momento, o mais sensato é pensar em proteger sua integridade física e moral. Depois de percorrer esses primeiros caminhos da reclamação, as pessoas acabam procurando unir-se, buscar uma ação judicial, até que chegam ao Ministério Público. São ações demoradas, mas que muitas vezes são necessárias para sinalizar ao estabelecimento que a comunidade está unida. Em alguns casos, o caminho da ação jurídica já é suficiente para que o empresário mude de atitude em relação à vizinhança. E, em outros casos, infelizmente, os moradores acabam ficando expostos por todo o período da ação, que é demorada, desgastante e pode até não surtir o efeito esperado.
Em São Paulo, nem o PSIU e nem a Polícia Militar conseguem atender aos problemas causados por cerca de 1.200 pancadões a cada fim de semana nas periferias, ou dar conta de punir a quantidade de estabelecimentos que abrem em São Paulo e que não analisam o impacto negativo sobre a vizinhança. Ainda assim eu acredito que é possível tratar do tema de maneira ampla, partindo para soluções inteligentes, harmonizar e modernizar as leis existentes e, principalmente, educar o cidadão do futuro que são as crianças e jovens para respeitarem os outros, explicando os males que a poluição sonora traz para a saúde. Enfim, uma boa ação educativa ambiental. O poder de irradiação das crianças é incrível, basta transmitir a elas os conceitos básicos de sustentabilidade. É a minha aposta no longo prazo.
Você considera que existe uma grande tolerância do brasileiro em relação ao ruído?
Eu não diria tolerância, mas uma grande falta de conhecimento sobre o assunto. Na comissão temos constatado que o barulho, no Brasil, é sinônimo de diversão e até de progresso e status. No fundo, é uma falta de educação generalizada incluindo várias outras questões. Nas conversas que temos no Ouvido no Ruído, nos perguntamos de onde vêm essas pessoas que acham que podem parar o carro na garagem de alguém? É todo um conjunto de atitudes que configuram uma total falta de cidadania. Tudo isso precisa de uma revisão, baseada em um plano de ação educativa junto à população.
A educação é o caminho, mas isso leva tempo. No curto prazo, quais as soluções?
Sim, a educação é o caminho. Como citei antes, acredito que o poder da informação passada por uma criança é capaz de influenciar os pais e por extensão toda a comunidade. É preciso também vontade política. Durante a Conferência na Câmara, pretendo sugerir que a poluição sonora seja assunto da Secretaria do Meio Ambiente, pois atualmente a Lei do Silêncio Urbano é fiscalizada pelo PSIU (Programa de Silêncio Urbano), que está dentro da Secretaria de Subprefeituras, por um decreto do executivo. Quero abrir um diálogo produtivo com o prefeito para que ele vista essa camisa com a sociedade e abrace a causa como uma questão ambiental. Sei que ele pode mudar a abordagem da poluição sonora, e por decreto, transferir para a Secretaria do Meio Ambiente. Isso vai dar uma repercussão enorme e as pessoas vão começar a entender que poluição sonora é poluição ambiental. E que faz mal a saúde.
O Conama tem as Resoluções 1 e 2, de 8 de março de 1990, que indica que a poluição sonora precisa ser tratada pelas Secretarias do Meio Ambiente dos municípios brasileiros. São Paulo ainda não encara as Resoluções como eu acredito que deveria, assim como muitas outras cidades. Mas Diadema e Fortaleza já seguem essa orientação. Gostaria que muito que o Ministério Público orientasse a prefeitura de São Paulo sobre essa questão. As pessoas precisam saber que a poluição sonora faz tão mal ao ser humano como as emissões de CO2.