ProAcústica | Baixa o som, pô!
Título | Baixa o som, pô!
Veículo | pe360graus.com | Crônicas do Joca
Fonte | Publicado originalmente em Portal Globo.com, em 19/05/11.
Resumo | Baixa o som, pô!
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Se eu fosse engenheiro ou arquiteto, seria especialista em acústica. Iria lavar a égua. No Recife, pelo menos, teria pouca, pouquíssima concorrência. Aliás, eles, os engenheiros e arquitetos, seriam os meus, digamos, fornecedores de matéria-prima. Era eles construindo e eu, atrás, faturando o tratamento acústico.
Fui a um restaurante de luxo outro dia. Tudo nos trinques, muito arrumado, fino e caro. Éramos seis em duas mesas juntas. Eu tava sentado na cabeceira de cá e Zé Maria Pereira Gomes na cabeceira de lá. Súbito, música ao vivo. A zoada era tanta, que eu só conseguia falar com Zé por mímica ou por meio de terceiros, mandando e recebendo recados. “Diga a ele que…” “Ele mandou dizer…” O jeito – e também pra fazer graça – foi falar com ele pelo celular.
(Como não vou a restaurante com música ao vivo, som ambiente alto ou televisão a todo volume, a explicação se impõe. Só ficamos sabendo que o restaurante tinha música ao vivo quando já era tarde e Inês de Castro era morta, como diria Camões; os pedidos já estavam feitos quando a desgraçada começou. Continuo, modestamente, preferindo restaurantes que têm a cozinha como atração e o silêncio como cortesia da casa).
Aqui perto, no Espinheiro, tem um barzinho legal, desses que o arquiteto pensou em tudo. Ou quase tudo. E os donos não economizaram nada, gastaram os tubos. Tudo do bom e do melhor. Mesas e mesinhas, cadeiras e poltronas; comidinhas caprichadas e bebidinhas honestas; garçonetes e garçons simpáticos e descolados. Taí um lugarzinho aconchegante. Feito pra gente comer, beber e conversar. Quer dizer, quando tá vazio, sem ninguém. Só você e, no máximo, dois, três amigos (aí, como só estão vocês, dá pra pedir ao maitre pra baixar ou desligar o som; “por enquanto”). Mas se você for lá, aconselho fazer o que eu faço. Assim que a freguesia começar a pintar, peça a conta e caia fora rápido. A zoada é de muitos decibéis. Em vez de acústica, desacústica.
Imagino que a desacústica pode ser mesmo ciência. Tanto quanto a acústica. Que por meio de cálculos e equações, seus resultados devem ser tão previsíveis quanto os de qualquer outra disciplina da Física. Também deve ter lá o seu Isaac Newton. E sua lei da ação e reação, suponho. É que todo som provoca nas superfícies lisas e não porosas uma reverberação de igual intensidade, mesma direção e sentido contrário. Ou Lei do Bate e Volta. Trocando em miúdos: se cada superfície do ambiente manda de volta o som recebido, obtém-se, então, como resultado, a pretendida zoada. Deu pra entender?
Agora, se, ao invés de reverberarem, as superfícies, no caso irregulares e porosas, absorverem o som, aí, então, tem-se a boa e velha acústica, conhecida e praticada há centenas de anos.
Bar e restaurante desacústico é o que mais tem por aí. Todos, creio, projetados por especialistas. Alguns, por certo, com doutorado em desacústica quântica. É só entrar no bar ou restaurante. Se a zoada for mais alta do que a de outros lugares, você já sabe, o projeto deve ser de um doutor em desacústica quântica.
“Do horrível mau hábito de falar gritando” foi título de uma crônica de Gilberto Freyre. Sabe de quando? 1926. “Por que gritamos tanto ao falar? (…) O brasileiro quase não possui voz de conversa.” Aí, ele cita Santo Thyrso: “Berrar é próprio dos suínos quando lhes chega a hora da desgraça.” E diz que nas discussões, vence quem fala mais alto. “Um vigoroso ou sonoro berro vale mais que um bom argumento.” Depois, vai buscar causas remotas, citando autores e observadores estrangeiros que atribuíam o hábito brasileiro de falar gritando ao modo como se falava “aos escravos, à criadagem e aos quase-escravos, depois da Abolição”. (Imagine se Gilberto tivesse conhecido a combinação perfeita, adotada pelos bares e restaurantes de hoje: gritaria, caixas de som e acústica de dar inveja a copo de liquidificador).
Sabedores do fenômeno, digamos, sociocultural brasileiro, os donos de ambientes fechados que recebem clientes e fregueses não poderiam deixar de contemplar o chamado tratamento acústico, tão importante quanto a decoração, o mobiliário e o ar-condicionado. Isso vale pra tudo. Sala de espera de consultório, velório, salão de beleza, barbearia, academia de ginástica, recepção de hotel, padaria, escritório, cinema, teatro e, claro, bar e restaurante. Além, obviamente, de não botarem música pra disputar volume com a conversa do freguês.
Afinal, quem paga a conta tem direito a abrir o bico. E a botar a boca no trombone.